Atualizado: 8 de mar. de 2020
:: Por Suzana Nory, de Delhi; Fotos de Haroldo Castro ::
As ruas indianas trazem surpresas a cada passo. São cores, aromas, olhares, placas, outdoors, carros, tuk tuks, vacas, bois, cabras, pessoas, tudo dividindo o mesmo espaço. Cada qual indo numa direção diferente.
“As buzinas travam uma conversa que nenhuma lei de trânsito conseguiria interpretar. No ocidente, o nome disto é caos. Aqui, o nome disto é vida.”
A rua é o espaço verdadeiramente democrático, onde todos têm direito de ir e vir, na velocidade e no tempo que convir. Afinal, a vida se assemelha mais às ruas da Índia do que às frias ruas da Europa, “onde tudo é métrica e rima e nunca dor. Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o amor me armou”: na Índia queremos a Europa, na Europa queremos a Índia. Que bom não precisar escolher. Ser cidadão do mundo, filhos da mesma mãe Gaia.
Passear tranquilamente pela ordem de mãos dadas com o caos. Um casamento de paradoxos, gerando filhos caórdicos, cuja língua materna é o belo, comunicado pelo brilho dos olhos e a lei suprema é a compaixão, de quem sempre se reconhece entre irmãos.
Por que eu estou na Índia? Assim que descubro uma resposta aceitável, ela se evapora no ar no momento seguinte e volto a me questionar: qual meu propósito aqui? Lembro uma pessoa que há pouco tempo me disse: se não consegue encontrar uma resposta, provavelmente precisa mudar a pergunta. Minha pergunta agora se torna: qual seria a pergunta?
Se eu me olhasse com os olhos de uma terceira pessoa, o que eu veria? Saio de dentro de mim um momento, e me vejo como parte de um grupo altamente improvável. Muito claramente percebo que nossa afinidade não está na cor da pele, na formação ou deformação escolar, no gosto musical, nas crenças religiosas ou políticas, e nem mesmo em nossas big ou small tummies. Não sou chic e não sou sheik. Entretanto, há uma egrégora que nos permeia e entrelaça, um campo de forças cósmicas e telúricas que faz com que o sorriso de um caiba na boca de todos e o brilho de um olhar seja refletido em outros pares de olhos, como se estivéssemos num labirinto de espelhos, sendo multiplicados indefinidamente.
Como foi que isto aconteceu? Que parte de mim faz parte da universidade das kebradas? Sim, acho que agora tenho uma boa pergunta. Não preciso de uma resposta que dê conta de todo meu ser.
“Preciso ser humilde e me recolher parte por parte. Desta forma, me reconheço como kebrada, pois mesmo sem ter vivenciado uma favela, carrego pedaços de mim que não se inserem no sistema.”
Portanto, preencho o primeiro requisito: sou kebrada e só assim posso requebrar! Percebo a maravilha deste paradoxo: é preciso estar quebrada para ser inteira ou ser quebrada para estar inteira, como num fractal, onde cada pedacinho revela o todo. Sou o avesso das kebradas. Nasci e vivi com privilégios incontáveis. Somente um privilégio me foi tirado: a vida em comunidade, em irmandade.
Não tenho dúvidas das lições que posso aprender com meus novos mestres. Mas no momento, minha moeda de troca é o silêncio. Acredito que minha presença possa ser ponte para muitas curas. Afinal, eu represento o sistema de diversas maneiras para a grande maioria das pessoas nas kebradas. E se eu me aquietar e me aquebrantar diante delas, talvez alguma delas perceba que o sistema não é um inimigo, porque ele é uma ilusão. E só se combate uma ilusão com a luz. A luz que só pode passar pelas rachaduras das kebradas.
Ainda não consigo dar nome ao que sinto caminhando pelas ruas da Índia. Se há um lugar no mundo que desafia todos aqueles que não creem na reencarnação, este é o lugar. Em cada curva que o tuk tuk faz, nosso coração responde em uníssono: TukTuk!
“Me sinto uma só com as ruas. Não estou pisando na Índia, estou pisando em mim mesma, na minha história que se perde nas brumas do tempo e me descubro nas entranhas desta terra.”
Sou eu dentro de cada estabelecimento ao lado de Ganesha, sou eu nos potes de cerâmica que queimam e me transformam em Shiva, sou eu oferecendo nos templos as flores mais lindas e coloridas que encontrei. Um dia cheguei a me perguntar por que os indianos não se libertavam deste sistema de castas. Minha lógica ocidental só enxergava escravidão e ignorância como resultados desta forma de vida. Mas se eu estivesse certa, como seria possível me deparar com tanta liberdade e sabedoria como tenho experimentado?
Suzana Nory Diaz sempre foi apaixonada pelo mundo das palavras e dos livros. Trabalhou grande parte de sua vida como microempresária e educadora no ensino privado de São Paulo. Foi professora, coordenadora pedagógica, diretora geral e proprietária de uma franquia de escola de idiomas. Agora, aos 51 anos, deu para inverter tudo. Sente-se com 15 anos, e quer se deseducar e se desajustar, porque como dizia Krishnamurti: “Se ajustar a uma sociedade doente não é sinal de saúde”.
Na Unidiversidade das Kebradas quer “kebrar” paradigmas e “paradogmas” e quer doutorar seu coração enquanto deixa sua mente no banco de reservas.
*A jornada Mestres das Kebradas na Índia é uma iniciativa da UniDiversidade das Kebradas e foi viabilizada graças a um financiamento coletivo com 120 colaboradores que captou cerca de 75 mil reais por parte de mais de 100 doadores. A logística da viagem foi executada de forma pro-bono pela Viajologia Expedições, operadora especializada em viagens de conhecimento e em rotas fora do usual. O projeto foi uma parceria com a Articulação Sul, organização que trabalha para promover iniciativas de cooperação Sul-Sul que visem a construção de sociedades mais justas, igualitárias e sustentáveis