Atualizado: 9 de jun. de 2020
“Udaipur, Cidade de Aprendizado” mostra que os professores estão por toda parte e incentiva a reflexão sobre abundância, escassez, consumo e estilo de vida sustentável
ESPECIAL – MESTRES DAS KEBRADAS NA INDIA
Por Giselle Paulino e Mestres das Kebradas, de Udaipur, Índia. Fotos de Haroldo Castro
Udaipur é, antes de tudo, a Universidade do Belo. Em nossa primeira tarde, passamos momentos sentados na laje do hotel em silêncio, atônitos com a beleza dessa paisagem. As cores, templos, arquitetura antigas, o castelo e, principalmente, um imenso lago nos ensinam a importância da estética, da arte e do cuidado. Foram longos momentos de contemplação.
A cidade nos foi apresentada por Vishal Sing. Sua “Caminhada da Sabedoria” é um passeio pelas tradições milenares de um povo, sua oralidade, espiritualidade e ofícios que se perpetuam pelos séculos. Cada passo representa um novo aprendizado. Aqui a sala de aula é a cidade. E os gurus estão por toda parte.
O projeto nasceu a partir da iniciativa “Udaipur, Cidade de Aprendizado”, que existe há mais de 15 anos para redescobrir diferentes ecossistemas de aprendizagem espalhados pela cidade. Quando o casal Manish e Vidhi Jain decidiram que nunca colocaram a filha numa escola, foi preciso usar a criatividade para pensar quais seriam os professores da menina. Artistas, músicos, agricultores, pessoas que colocam suas ações a serviço da sociedade e da ecologia e que são apaixonadas pelo que fazem! Nesse sentido, Udaipur é uma grande sala de aula.
Um grupo de mulheres agachadas na beira do lago lavam suas roupas, outras se banham e fazem seus rituais de purificação matinal. A relação do indiano com o meio ambiente é outra. A água, por exemplo, é um símbolo de purificação. “A água é também a mãe de todos”, explica Vishal. “Nossa cultura estabelece sempre uma relação humana com a natureza. “Perdemos a conexão quando a água passa a ser vista pelo homem apenas como um recurso”.
Ao longo do leito do lago, uma sequência de templos de deuses indianos chama a atenção. Antes mesmo de ousar compreender alguma coisa, aprendemos que o hinduísmo tem mais de 72 mil deuses. Por hora, reconhecer Ganesha, o deus elefante que tira os obstáculos e abre caminho, Durga, a energia feminina da criação que aparece sentada em um tigre e Vishnu, um dos principais deuses que dá continuidade à dança do universo, já nos basta.
Aos poucos, fomos entendendo também o significado das pinturas nas paredes. Quando uma pessoa da família se casa, o pai da noiva manda pintar ao lado da porta de casa a figura de um elefante e, do outro, um cavalo. O elefante significa a sabedoria e o cavalo significa a força. “O amor sozinho não funciona, precisamos da força e da sabedoria”, explica Vishal. Tudo é uma grande desconstrução.
Vimos também uma casa com pinturas de pezinhos dourados no chão indicando um caminho em direção à porta. Vishal nos explica que este é o sinal que a família está pronta para receber as graças de Lakshmi, deusa da riqueza. Mais a frente, uma pequena ágora de mármore nos mostra onde as pessoas costumavam se reunir para contar essas histórias para os mais jovens e passar as tradições e a cultura. A tradição oral é uma das formas de educação mais bonitas e fortes que existem.
Andamos mais algumas quadras pelas ruas estreitas e saímos num espaço da cidade mais tradicional. Cada rua está dividida por um determinado ofício: os comerciantes, os artesões, as mulheres que fazem potes de barro e pratinhos de folha. É um trabalho ancestral passado por gerações e gerações. Paramos para fazer alguns pratinhos. Com folhas de banana ou outras folhas de árvores, esses pratinhos ecológicos são uma grande alternativa a plástico que se espalha pelo planeta. Hoje na Índia, ainda são muito utilizados na Índia em cerimônias religiosas ou em casamentos.
A experiência traz uma profunda conexão com nossa própria história, cultura e comunidade no Brasil. A caminhada nos faz refletir sobre os bens comuns, sobre o conceito de abundância versus escassez, sobre consumo, estilos de vida sustentáveis e felicidade.
Vishal nos leva ao haveli de sua família, uma casa de 300 anos, presenteada por um marajá. Há séculos, um de seus ancestrais teria salvo um príncipe de Mewar de um assassinato. Uma sala em sua casa com imagens, retratos e pinturas trazem essa história. Refletimos sobre disputas de poder e violência pelas quais passaram nossos ancestrais. Trazer à luz essas sombras é um processo essencial para não repetir erros do passado.
A fome bateu e terminamos nossa caminhada no restaurante Millets of Mewar. Além da proposta educativa, o projeto Udaipur, Cidade de Aprendizado, também incentivou diferentes experimentos locais voltados para a própria comunidade. O Millets (milhete, em português) foi um deles. O restaurante nasceu com a proposta de recuperar as receitas de milhetes típicas da região. Mas essa história vamos contar depois. A comida estava tão boa que retornamos diversas outras vezes ao local.
Para nós, a “Caminhada da Sabedoria” nos deixa claro que é preciso repensar profundamente nosso estilo de vida urbano e criar alternativas à urbanização e às mudanças complexas que estão ocorrendo. Mas precisamos, antes de tudo, olhar para nosso interior. Só seremos capazes de criar algo realmente novo quando cuidarmos do que está dentro de cada um.
*O projeto Mestres das Kebradas na Índia é uma iniciativa da UniDiversidade das Kebradas e foi viabilizada graças a um financiamento coletivo que captou cerca de 75 mil reais por parte de mais de 100 doadores. A valor apoiou a participação de Hermes de Sousa, do Instituto NUA; Eda Luiz, educadora do Cieja; Tina Gonçalves, projeto Café das Marias; Elem Fernandes e Claudio Miranda, do Instituto Favela da Paz. A logística da viagem foi executada de forma pro-bono pela Viajologia Expedições, operadora especializada em viagens de conhecimento e em rotas fora do usual. O projeto é uma parceria com a Articulação Sul, organização que trabalha para promover iniciativas de cooperação Sul-Sul que visem a construção de sociedades mais justas, igualitárias e sustentáveis
Participaram também Giselle Paulino, cofundadora da UniDiversidade das Kebradas, Haroldo Castro, da Vialogia Expedições; Suzana Nory, da UniDiversidade das Kebradas, Nelson Vilaronga, do Circo da Lua; Bianca Suyama, da Articulação Sul e UniDiversidade das Kebradas ; Ivone de Souza, da Articulação Sul e Suélen Brito, da rede TEN e UniDiversidade das Kebradas.